Os filhos de Húrin – o mais sombrio de Tolkien

“Entre todos os meus contos da Primeira Era, a história de Túrin é a mais sombria e poderosa.” J.RR. Tolkien, em carta nº 131

É com essa citação que te convido a conhecer Os filhos de Húrin: profundo, épico e angustiante, que permeia a trajetória de Túrin Turambar, em uma luta contra forças do mal, mas também contra si mesmo.

As histórias que foram para o mundo

Uma das obras mais influentes no que diz respeito a literatura e fantasia, escrita pelo britânico J.R.R. Tolkien, foi o épico O Senhor dos Anéis. Mesmo aqueles que não têm o hábito da leitura devem conhecer o autor, ou a obra, pelos filmes, que expandiram ainda mais a base de fãs para jovens e adultos que não se interessavam por livros, mas que se cativaram por esse mundo fantástico recheado de raças de criaturas mágicas como elfos, orcs e, principalmente, por hobbits – criaturinhas do tamanho de crianças, mas com pés enormes e peludos – que mergulham de cabeça em uma jornada para salvar a Terra Média.

Eu fui um dos que se apaixonaram pelos pequenos hobbits. São pequenos e se contentam com sua vida simples, com suas casinhas e plantações – não há um crescimento pessoal ou busca de novos horizontes. E isso torna a jornada dos hobbits ainda mais especiais, pois eles não têm ânsia por grandes feitos, porém desejam acima de tudo manter o condado longe de perigos futuros. Cheguei ao ponto de desejar ler os livros para conhecer mais esse universo. A partir daí, me tornei um leitor.

Engoli os livros de O Senhor dos anéis, mas eis que me deparo com algo surpreendente: temos outras obras que se passam no mesmo universo onde Frodo e Sam conseguiram finalmente jogar o Um anel no fogo da Montanha da Perdição. Claro, a maioria deve conhecer também O Hobbit, o primeiro grande sucesso de Tolkien. Entretanto, há também os livros que foram publicados por Christopher Tolkien, após a morte do nosso querido e admirado escritor.

Round wooden door surrounded by vibrant greenery, echoing hobbit house design.

O universo de Tolkien

Entre eles está O Silmarillion que é inicío de tudo: a criação do universo, as raças, e os primeiros conflitos entre o Deus nessa história (Iluvatar) e uma de suas criações o Valar Melkor (depois conhecido como Morgoth). Desde aqui ja vemos claras semelhanças com a história da Bíblia. Tolkien, cristão como era, quis trazer um pouco de sua religião e paixão para a históriam representando em muitos personagens algo das escrituras. Entre O Silmarilion e O senhor dos anéis, temos os acontecimentos de Os Filhos de Húrin, uma história marcada por desgraças, sofrimentos e muitas batalhas.

A maldição que assola Húrin

A história se passa milhares de anos antes de O Senhor dos anéis, durante a Primeira Era da Terra-Média, em um ambiente de constantes guerras entre Morgoth (o primeiro Senhor Escuro e mestre de Sauron) e todas as outras raças, principalmente contra os Elfos. A guerra começou quando Morgoth roubou as Silmarils que são jóias que irradiam uma luz pura, extraídas das árvores sagradas, e que pertenciam ao Elfo Feanor. Após roubar e fugir, Feanor e seus descendentes partem jurando guerra e justiça contra esse ser, desencadeando um conflito que durou centenas de anos.

Capa do livro: Os filhos de Húrin, de J R R Tolkien.

Entre tantos Reinos élficos, havia alguns senhores homens que também se dispunham a marchar contra O Senhor Sombrio.

Um desses era Húrin, um senhor dos homens, que foi treinado por elfos e conquistou confiança e respeito deles.

É onde começamos o livro.

Húrin levanta sua espada e grita em meio a todos os seus cavaleiros: “A noite está passando!”. A frase representa a esperança e desafio que teriam contra os exércitos de orcs. Enquanto partem, sua esposa Morwen e seus filhos Túrin e Lalaith, aguardam pelo retorno vitorioso deles. Esse confronto foi o quinto desde o começo dessa guerra e ficou conhecido como A Batalha das Lágrimas Perdidas, pois a derrota foi enorme e Húrin é capturado e posto no topo da montanha inimiga. Morgoth com sua maldade sem fim, impõe uma maldição em Húrin, para que fique aprisionado e não morra por fome ou velhice, para que veja tudo lá de cima tudo que Morgoth ainda fará, e principalmente, a maldição estará imposta nos descendentes dele, condenados a sofrer.

A infância de Turin é marcada por muito sofrimento. Sua pequena irmã, Lalaith, morre devido a uma doença grave que assola crianças e idosos da região. Além disso, com a partida de quase todos os homens, logo outros invasores chegam em Dor-Lómin para conquistar e escravizar as mulheres e crianças. Morwen não vê outra opção a não ser mandar seu filho para algum reino Élfico, implorando que o aceitem. Ela não pode ir junto, pois está aguardando um filho de Húrin em seu ventre e a jornada é cheia de perigos com orcs à espreita.

Esse é um dos pontos que mais me chamam atenção na história. Acompanhar o ponto de vista da criança que tem seu pai sumido, a perda de uma irmã querida e ainda por cima ter que se separar de sua mãe e morada, tudo isso sendo uma criança sem entender direito o que é a morte, a escravidão e o sofrimento. Reflete muito a realidade de muitas crianças em meio a conflitos que tiveram que amadurecer precocemente, carregando traumas para a vida adulta, assim como veremos em Túrin.

A tragédia de Túrin Turambar

O garoto consegue chegar ao Reino de Doriath, e é recebido como um filho adotivo pelo rei Thingol. Ele cresce sendo treinado em batalha e conhece a língua e costumes élficos. Porém, os traumas o transformam em um homem amargo, com sede para matar todos os orcs que puder, e não escuta conselhos seja de amigos ou superiores. Túrin passa menos tempo no reino e mais nas delimitações da floresta, encurralando e abatendo orcs. 

Tolkien, veterano da Primeira Guerra, reflete nas batalhas de Túrin o que soldados passaram no front. A brutalidade das batalhas, a sensação de impotência por não conseguir ter impactos reais apesar de seus esforços e a perda de entes queridos.

De fato, é louvável Túrin querer fazer a diferença contra tantas criaturas ruins que só matam e escravizam pessoas, mas esse guerreiro põe em perigo muitos companheiros com sua raiva cega, se deixando até entrar em conflito com os próprios companheiros. Assim, se envolve em uma briga interna que acaba em morte para um Elfo. Túrin, consumido pela amargura, afasta-se de Doriath e assume novas identidades, tentando escapar de seu passado.

Em paralelo à vida de Turin, Morwen teve sua filha e conseguiu criar ela até sua fase adulta com dificuldade, na extrema pobreza. Até que arriscou fugir com Nienor e alcançou o Reino de Doriath, apenas para descobrir que Turin havia partido.

A perdição de Túrin: Glaurung

Mãe e filha procuram, com a ajuda de alguns elfos, pelo filho perdido e acabam se deparando com a serpente Glaurung, uma criatura enorme e que tem poderes absurdos, como fogo e feitiços obscuros através do olhar. Na realidade, essa criatura estava ali com o objetivo de trazer desgraça para Túrin, e seja por obra do destino ou apenas azar, Glaurung se vê na oportunidade de causar ainda mais contra o matador de orcs. É vendo essa oportunidade que Glaurung, através do olhar, joga em Nienor uma amnésia, tão avassaladora, que a garota esquece até como falar, fugindo desesperada pela floresta. Túrin, que naquele momento se chamava Turambar, encontra a garota assustada e resolve lhe dar um nome e ensiná-la tudo sobre a vida. De fato ele não a conhece e nem ela se lembra dele, mesmo com a ligação sanguínea que ambos têm. 

Eles se apaixonam, e assim se faz mais uma das maldades que deram alegria ao Senhor Sombrio. Niniel, como ficou chamada, tenta fazer com que Turambar viva uma vida comum na floresta, sem batalhas ou perigos. Ele se vê tentado a aceitar, contanto que ela se case com ele. Porém, Glaurung mais uma vez retorna, a fim de queimar toda a floresta em que se encontram. Uma última batalha será executada contra a serpente, com um final bem Shakespereano dos dois. Ao observar Nienor, também podemos ver metáforas para uma garota em tempos de guerra. Sua amnésia representa a busca por uma identidade nos tempos de conflito, ou a própria amnésia sendo vista como um dano psicológico decorrente das guerras.

Ilustração da Terra média, com montanhas e um dragão, feita por Tolkien

“Então Túrin virou-se e avançou contra ele, e as bordas de Gurthang brilhavam como chamas; mas Glaurung conteve seu sopro e abriu amplamente seus olhos de serpente e fitou Túrin. Sem medo, Túrin olhou para eles enquanto erguia a espada; e imediatamente caiu sob o feitiço dos olhos sem pálpebras do dragão, e ficou imóvel.”

Paralelos com Édipo Rei

Uma das referências literárias que Tolkien possivelmente teve para a escrita desse conto, foi a trama grega de Édipo Rei, escrita por Sóclafes no século V a.C. Nela, um oráculo profetizou que o filho do rei mataria o pai e se casaria com a própria mãe. O rei tenta evitar, sacrificando o filho, que acaba sendo salvo por um pastor. Quando Édipo cresce, a previsão se torna real, pois ele acaba matando o pai sem nem o conhecer, por conta de um desentendimento entre os dois. Então ele chega a uma cidade que estava sendo aterrorizada por uma Esfinge. Após salvá-los, lhe é recompensado a mão da viúva Jocasta. O desfecho também tem muita semelhança com os Filhos de Húrin, em que após descobrir toda a verdade, Jocasta comete suicídio e Édipo, desesperado, se cega e se exila de todos.

Conclusão

Acredito que há muitas outras observações e reflexos da realidade da época em que Tolkien vivia, que outros leitores podem encontrar, assim como muitas outras que eu mesmo encontraria, relendo a obra. É um conto que ainda estava em fase de refinamento antes da morte de J. R. R. Tolkien, mas que já demonstrava temas profundos e tristes, envoltos em uma narrativa e personagens incríveis. Acredito que o que torna as obras de Tolkien tão incríveis é sua capacidade de criar um universo rico (seja por paisagens, musica, criaturas) e ao mesmo tempo com temas bíblicos, temas que tratam de livre-arbítrio e destino, e em especial aqui sobre traumas, conflitos e consequências. Há muitos outros pontos da história que não trouxe aqui e que também tem sua importância, mas do fundo do coração espero que ao menos uma pessoa que está lendo isso tenha a vontade de conhecer essa obra.

Nota para a obra:

Fique por dentro da nossa página e outros posts! Já conferiu os livros que inspiraram a aclamada série YOU, da Netflix? Dá uma olhada!

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